JURIS:CV:STJ:2013:12

Relator: Raúl Querido Varela

Descritores: Abuso direito; Nulidade do negócio;

Processo: 1

Nº Convencional: 97/2013

Data do Acordão: 16/07/2013

Sumário

Sumario Teste

Decisão Texto Parcial

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Decisão Texto Integral

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça – 1ª Secção.

A e M, residentes em Achada de Santo António, intentaram no Tribunal de Comarca da Praia, acção ordinária contra o Município da Praia, pedindo que seja declarado nulo o contrato de compra e venda celebrado entre eles, e a Câmara, alegando em síntese que:

- São donos de um prédio urbano situado em Achada de Santo António, perto do mercado medindo cento e quarenta metros quadrados e que confronta do Norte com B, do sul com D, do leste com R e do oeste com P, inscrito na matriz predial deste conselho sob o n.º 1804.

- O referido prédio pertence aos autores, pois que foram estes que o construíram, com material seu e nele habitaram por muitos anos com a sua família.

- Este prédio foi vendido ao Município da Praia, entre 1980 e 1981, pelo preço de 750.000 (setecentos e cinquenta mil escudos).

- A venda é nula porque foi celebrado sem escritura pública.

Pedem a procedência da acção e, consequentemente a declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado com o município, com fundamento na não observância de forma legalmente exigida.

Devidamente citado, o réu contestou alegando que não celebrou com os autores um contrato de compra e venda, mas sim de permuta ou troca.

Foi proferido despacho saneador.

O Mmo. Juiz a quo julgou a acção improcedente porque considerou a conduta dos autores um caso de abuso direito e em consequência absolveu o réu do pedido.

Inconformados com a decisão do Mmo. Juiz “a quo”, os autores interpôs o presente recurso concluindo da seguinte forma:

- Não existe da parte dos recorrentes qualquer comportamento que possa ser considerado como abuso de direito ao deduzir esta acção porquanto:

- Não levou dolosamente a outra parte no negócio a prescindir da forma legalmente exigida para vir depois prevalecer-se dessa falta de forma para retirar vantagem ou recusar o cumprimento de uma obrigação.

- A utilização de esquemas explicativos de decisão utilizados pelo Juiz recorrido mostra (venire e supressiva que não foram devidamente assimilados pelo juiz e apreciados em toda a sua dimensão por forma a poderem ser aplicados com justiça e não com leviandade.

- Não se pode dizer que o recorrente violou a confiança depositada no negócio pela outra parte porque ele não tem o direito de confiar num negócio que é considera nulo por lei.

-Trata-se de uma determinação firme da ordem juridica e não de recomendações não vinculativas em que o interesse público prevalece numa incondicionada clareza.

- Não se pode dizer que o investimento da confiança da outra parte na relação juridica deve ser censuravelmente imputável ao recorrente devendo antes dizer-se que não existe nenhuma razão para a outra parte, que sabe que o negócio é nulo, confiar que o recorrente não requeria a nulidade do negócio.

- A supressiva e o venire comportam elementos e dimensões que não foram devidamente ponderados e analisados para serem aplicados ao caso como impõem considerações de justiça.

- Contra as considerações com base no venire e na supressiva da decisão recorrida deve dizer-se que se opõe a natureza plena das normas formais e a estrutura aberta de invocação de nulidade.

-Essas questões da supressiva e do venire tiveram origem na prática jurisprudencial alemã nos finais do séc. XIX e não foram consagradas no código civil que muito deve aos autores alemães e italianos.

- A decisão recorrida viola os artigos 220.º e 875º.

Cumpre decidir:

Como sabemos são as conclusões de recurso que delimitam o objecto do recurso e tendo em conta as conclusões formuladas fls. 78 e 79 podemos dizer que a questão que urge resolver consiste em saber se a conduta dos autores, ora apelantes configura ou não um caso de abuso de direito e se a decisão recorrida violou ou não os artigos 220.º e 875.º do CC.

Antes de mais, cumpre indicar os factos dados como provados pela sentença recorrida:

- São donos de um prédio urbano situado em Achada de Santo António, perto do mercado medindo cento e quarenta metros quadrados e que confronta do Norte com B, do sul com D, do leste com R e do oeste com P, inscrito na matriz predial deste conselho sob o n.º 1804.

- Este prédio, entre 1980 e 1981, passou para o domínio do réu na sequência de um negócio jurídico celebrado entre as partes, mediante o pagamento aos autores da quantia de 750.000$00.

- Para além dessa quantia, o réu atribui por aforamento aos autores um lote de terreno, sito em Achada de Santo António, onde construíram uma nova casa.

- O contrato de aforamento do referido lote de terreno atribuído aos autores entre 1980 e 1981 foi formalizado em 13- 11-1985.

- Em 13-11-1985, o réu concedeu licença aos autores para ampliação da sua nova moradia.

- Em 29-12-1995, os autores moveram a presente acção contra o réu.

Passemos agora a apreciar as questões suscitadas pelo presente recurso.

No caso ora apresentado vieram os autores, ora apelantes pedir a declaração de nulidade de um contrato de compra e venda celebrado com o réu, ora apelado. Quando o réu apresentou a sua contestação alegou que não celebrou um contrato de compra e venda mas sim de permuta. O Mmo. Juiz a quo ponderou que para qualquer desses contratos é exigida escritura pública, citando os respectivos dispositivos legais.

Conforme o disposto no art. 220.º do CC, os negócios jurídicos são nulos quando não observem a forma legalmente prescrita. A nulidade pode ser invocada a todo o tempo e por qualquer interessado. Mas será que no nosso caso os autores podiam invocar a nulidade a todo o tempo? Será que esta invocação pode ser paralisada pela figura do abuso de direito como decidiu o Mmo Juiz “ a quo”?

Como ficou provado os autores eram proprietários de um prédio urbano situado em Achada de Santo António, mas entre 1980 e 1981, passou para o domínio do réu na sequência de um negócio jurídico celebrado entre as partes, mediante o pagamento aos autores da quantia de 750.000$00.

Com o passar do tempo os autores decidiram recorrer ao tribunal (mais concretamente em 1995) para pedir a declaração de nulidade do dito negócio jurídico por inobservância de formalismo legal.

No caso concreto o Mmo. Juiz a quo julgou a acção improcedente porque considerou a conduta dos autores um caso de abuso de direito.

Iremos ver de seguida se realmente a conduta dos autores ora apelantes configura ou não um caso de abuso de direito.

O instituto do abuso de direito encontra-se consagrado no art. 334º do Cód. Civil. Nos termos deste artigo “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Este artigo consagra a concepção objectiva de abuso de direito. A boa-fé é aqui entendida com um carácter objectivo, valendo não como estado de espirito subjectivo mas como um princípio normativo, pelo qual todos devem actuar como pessoas do bem, num quadro de honestidade, correcção, probidade e lealdade, de forma a não defraudar as legítimas expectativas e a confiança gerada nos outros1.


 


 


 

A jurisprudência e a doutrina cabo-verdianas têm entendido de que no negócio formal não é invocável o abuso de direito para proteger a segurança dos negócios jurídicos a casos alguém tenha dolosamente levado outrem assinar o contrato.

Talvez por influência do Direito Constitucional, as posições doutrinária e jurisprudenciais vêm quebrando a sua rigidez em homenagem aos princípios de confianças e da boa-fé.

Assim não é invocável a nulidade sempre que o interessado tenha inculcado na outra parte a confiança de que o não faria por não o ter feito durante um considerável lapso do tempo. É este o tipo de inalegabilidade, que o Mº Juiz adoptou na sentença “a quo”.

Neste sentido além da jurisprudência do Mº Juiz “a quo” aqui citada, cfr. Ac. STJ português de 19 de Outubro de 2000 G Tomo III pág. 83-84.

Aqui durante 15 anos os autores não exerceram o direito de invocar a nulidade, antes pelo contrário tiveram uma conduta que dava a entender que não mais o fariam.

Assim tempo após o negócio pediram à CMP autorização, que obtiveram, para construir a moradia no terreno que lhes foi dado de aforramento no âmbito do negócio, levando a outra parte a fazer investimento de confiança, (Menezses Cordeiro – Tratado de Direito Civil português I parte geral Tomo IV.

O comportamento dos autores configura exercício abusivo de um direito.

Pelo exposto e nos termos referidos decide-se confirmar a douta sentença e negar provimento ao recurso, com custas pelos apelantes.--------------------------------------Praia, 16 de Junho de 2013.-------------------------------------------------------------------

Ass. Dr. Raul Querido Varela – relator, Manuel Alfredo Monteiro Semedo e Anildo Martins – adjuntos.-------------------------------------------------------------------

1 Capelo de Sousa, Teoria Geral do Direito Civil, Volume I, Coimbra editora, 2003, pág. 212.

Descritores:
 Abuso direito; Nulidade do negócio;