JURIS:CV:TRB:2017:3

Relator: N/D

Descritores: CRIME DE FURTO QUALIFICADO; CONFIDENCIALIDADE DAS COMUNICAÇÕES; DIREITO À PRIVACIDADE; SUSPEITO;

Processo: 21.16.17

Nº do Documento: 07/16-17

Data do Acordão: 16/02/2017

Votação: Unanimidade

Texto Integral: S

Meio Processual: Recurso Ordinário

Indicações eventuais: Improcedente

Área Temática: Direito Penal | Direito Processual Penal

Legislação Nacional: CRCV (44.º) Código Penal [196º, nº1, alínea I)] Código Processo Penal [68.º; 174.º; 175.º; 255.º, n.º1, alínea a) e n.º 2; 301.º; 304.º; 305.º, nº1; 308.º; 457.º ]

Sumário

I - A Constituição da República de Cabo Verde garante o segredo das telecomunicações, admitindo, porém, restrições nos termos da lei processual criminal e por decisão judicial.

II- A lei exige que haja suspeito para que se ordene ou autorize a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas, sendo necessário que esse suspeito seja indicado no requerimento em que o Ministério Público formule tal pedido.

III - Não havendo suspeito tal como previsto no Cód. Proc. Penal, mas apenas um "agente do crime desconhecido", sem que exista pessoa determinada ou determinável, e estando em causa direitos fundamentais (direito à privacidade e inviolabilidade das telecomunicações), as respectivas restrições, nos termos requeridos pelo Ministério Público, junto do Tribunal a quo, têm de se conformar com o quadro indicado pela Constituição da República de Cabo Verde e Lei Processual Penal vigente, devendo, ainda, reger‑se pelos critérios da proporcionalidade, adequação e necessidade.

Decisão Texto Parcial

Não disponível.

Decisão Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Barlavento

I.

O Magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal Judicial da Comarca da Boa Vista, inconformado com o conteúdo do douto despacho do Mmº Juiz a quo que indeferiu o seu requerimento em que solicitava a dispensa de sigilo das comunicações das operadoras de telecomunicações móveis nacionais, Cabo Verde Telecom e Unitel T+, vem dele interpor recurso ordinário, em 09.11.16, para o Supremo Tribunal de Justiça.

Pretende, seja revogada a douta decisão recorrida e substituída por outra que ordene as operadoras de telecomunicações móveis, Cabo Verde Telecom e Unitel T+, a fornecer ao Ministério Público as informações solicitadas, ou seja,

"a) Que as operadoras de telecomunicações móveis, Cabo Verde Telecom e Unitel T+, informem qual o IMEI do equipamento móvel subtraído, com número 5XXXXX, que até ao dia 26 de Setembro de 2016, cerca das 15h30, estava a operar nas suas redes.

b) Que as referidas operadoras de telecomunicações móveis informe:

  1. Se o equipamento móvel em questão foi usado em data posterior a 26 de Setembro de 2016, cerca das 15h30, e, em caso positivo, quais os números de cartões nele utilizado;
  2. A lista de chamadas realizadas e recebidas através do respectivo equipamento;
  3. Qual a identidade dos titulares dos cartões telefónicos usados no equipamento em causa;
  4.  Na eventualidade de tratar‑se de cartões pré‑pagos o seu titular não se encontra registado, se forem efetuados carregamentos desses cartões e, em caso positivo, quais os respectivos códigos de carregamento, conta correspondentes e identidade de tais titulares".

Para tanto, apresenta doutas alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:

‑ "A decisão recorrida padece de ilegalidade, já que ao indeferir o requerimento do Ministério Público impediu a realização de uma diligência essencial para a descoberta da verdade e do agente dos crimes indiciados.

‑ A inexistência de indícios suficientes da prática dos crimes indiciados alegada na decisão recorrida é infeliz e desproporcional ( ... ) por ser uma exigência para a dedução da acusação, nos termos dos artigos 320, nº1 e 322º, ambos do Código Processo Penal.

‑A Lei cabo‑verdiana não exige que existam já indícios do crime e nem que as informações pretendidas possam ser obtidas por outros meios.

‑ O crime de roubo, com recurso a armas, é perturbador da paz e tranquilidade públicas ( ... )

‑ A diligência requerida tem por vista descobrir o autor dos crimes indiciados e recuperar o equipamento móvel subtraído com o IMEI nº 3xxxxxxxxxxxx/3zzzzzzzzzzzzzz (…)

‑ Na fase de instrução busca‑se a materialidade do crime e do seu agente e não o julgamento dos indícios já existentes.

‑ A situação dos autos integra à excepção prevista no artigo 44º da Constituição da República de Cabo Verde e no artigo 255º, nº1 alínea a) do Código de Processo Penal ( ... )

‑ A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 68º, 174º, 175º, 255º, nº1, alínea a), 301º, 304º,305º, nº1 e 308º, todos do Código de Processo Penal, ao impedir a realização de uma diligência essencial para a descoberta da verdade material e do agente dos crimes indiciados."

O recurso foi admitido, tendo o Mmº Juiz a quo sustentado o despacho recorrido, ao abrigo do disposto no artigo 457º do Código Processo Penal, reiterando a sua posição quanto à não justificação do levantamento da confidencialidade das comunicações, com base apenas numa denúncia contra desconhecidos, e do acerto da sua decisão, estando ponderadas as finalidades e âmbito da instrução, assim como a necessidade de protecção dos direitos fundamentais das pessoas.

Entende, ainda, que dispõe de toda legitimidade de tomar tal decisão, uma vez que se está na presença de um acto de instrução de competência exclusiva do juiz; consciente, porém, que tal poder (de ordenar ou autorizar) não poderá ser encarrado como um acto arbitrário.

Pese embora o recurso tenha sido interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, os autos foram remetidos para este Tribunal, que é o competente.

Submetidos ao Ministério Público, junto do Tribunal ad quem, a Srª Procuradora de Círculo de Barlavento emitiu o seu douto parecer, segundo o qual, “….a decisão do M. Juiz a quo mostra‑se infundada, cabendo razão ao Digno Representante do Ministério Publico.”

Sufragou, integralmente, os argumentos já aduzidos pelo magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo.

O recurso é o próprio, tendo‑se‑lhe mantido o efeito devolutivo (art. 459º, nº1 do CPP) (fls. 24).

Colhidos os vistos legais, o processo foi submetido à conferência. Cumpre apreciar e decidir.

 

2‑ Fundamentação.

São, de interesse para a decisão do recurso, os seguintes elementos processuais que o instruem:

‑ O auto de notícia (fls.8), que dá conta que foram subtraídos do escritório da denunciante, por desconhecidos, um computador portátil de cor preta e de marca Acer, no valor de oitenta e oito mil escudos (88.000$00) e de um telemóvel, de cores branca e preta, de marca Alcatel, no valor de seis mil escudos (6.000$00), com cartão SIM 5XXXXXX;

‑ Sendo desconhecida a identidade do autor dos factos denunciados, e com vista a apurá‑los, o Ministério Público elaborou a promoção (fls.09) nos termos seguintes:

Indicia a denúncia a prática por agente desconhecido de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 196º, nº1, alínea I) do Código Penal que é de natureza pública. Nestes termos determina‑se a abertura da instrução (..)".

Com vista a prosseguir a investigação que está em decurso nos presentes autos, e identificação global dos seus autores, requer‑se ao Meritíssimo Juiz, nos termos do disposto no artigo 255º, n‑°1, alínea a) do Código Processo Penal, que determine:

"a) Que as operadoras de telecomunicações móveis Cabo Verde Telecom e Unitel T+ informem qual o IMEI do equipamento móvel subtraído, com número 5XXXXXX, que até ao dia 26 de Setembro de 2016, cerca das 15h30, estava a operar nas suas redes.

b) Que as referidas operadoras de telecomunicações móveis informe:

  1. Se o equipamento móvel em questâo foi usado em data posterior a 26 de setembro de 2016, cerca das 15h30, e, em caso positivo, quais os números de cartões nele utilizado;
  2. A lista de chamadas realizadas e recebidas através do respectivo equipamento;
  3. Qual a identidade dos titulares dos cartões telefónicos usados no equipamento em causa;
  4. Na eventualidade de tratar‑se de cartões pré‑pagos o seu titular não se encontra registado, se forem efetuados carregamentos desses cartões e, em caso positivo, quais os respectivos códigos de carregamento, conta correspondentes e identidade tais titulares.

Essa promoção veio a ser indeferida pelo despacho do Mmº Juiz a quo, objecto do presente recurso, cujo teor é o seguinte:

"Por inexistirem nos autos indícios suficientes e que justifiquem a compressão do direito fundamental à inviolabilidade das telecomunicações (art.º 44º da CRCV), o Tribunal decide indeferir o requerimento que antecede.

 

Apreciando.

Face ao objecto de recurso, ínsito nas conclusões do recorrente, a questão submetida à nossa apreciação reside em determinar se, in casu, se mostram, ou não, reunidos os pressupostos legais para ordenar às operadoras telefónicas, Cabo Verde Telecom e Unitel T+, o fornecimento de dados de localização de telemóvel e de tráfego pretendidos pelo recorrente.

Antes de mais, a Constituição da República de Cabo Verde garante o segredo das telecomunicações, admitindo, porém, restrições nos termos da lei processual criminal e por decisão judicial.

Assim, dispõe o artigo 44º da Constituição da República de Cabo Verde que , "É garantido o segredo da correspondência e das telecomunicações, salvo nos casos em que por decisão judicial proferida nos termos da lei do processo criminal for permitida a ingerência das autoridades públicas na correspondência e nas telecomunicações."

Quanto à lei processual criminal, estabelece a alínea a) do nº1 do artigo 255º do Código Processo Penal de Cabo Verde que, "A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas por meio de correio electrónico ou outras formas análogas só podem ser ordenadas ou autorizadas por despacho do Juiz, se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova quanto a crimes: puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;

Ora!

O recorrente, argumenta nas suas conclusões que, a decisão recorrida padece de ilegalidade, já que ao indeferir o requerimento do Ministério Público impediu a realização de uma diligência essencial para a descoberta da verdade e do agente dos crimes indiciados; que a Lei cabo‑verdiana não exige que existam já indícios do crime e nem que as informações pretendidas possam ser obtidas por outros meios; a diligência requerida tem por vista descobrir o autor dos crimes indiciados e recuperar o equipamento móvel subtraído; que na fase de instrução busca‑se a materialidade do crime e do seu agente e não o julgamento dos indícios já existentes e que a situação dos autos integra à excepção prevista no artigo 44º da Constituição da República de Cabo Verde e no artigo 255º, nº1 alínea a) do Código de Processo Penal etc.

Admitindo, porém, a aplicação extensiva do artigo 255º, a) do Código Processo Penal a casos de obtenção de dados do telemóvel (dados do tráfego[1]), falece, a priori, os doutos argumentos do magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal a quo, e acima descritos, tendo em conta o disposto no nº2 do artigo citado, que dispõe o seguinte:

"A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser ordenadas ou autorizadas em relação a suspeitos ou a pessoas em relações às quais seja possível admitir, com base em factos determinados, que recebem ou transmitem comunicações provenientes de suspeitos ou a eles destinados, ou a que os suspeitos utilizam os seus telefones."

A lei exige que haja suspeito para que se ordene ou autorize a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas, sendo necessário que esse suspeito seja indicado no requerimento em que o Ministério Público formule tal pedido.

Para o Código de Processo Penal de Cabo Vede "É suspeito, todo aquele que relativamente ao qual exista indício sério de que se cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para nele participar."

In casu, como se pode constactar da promoção do Ministério Público (fls.10) e depreender das conclusões do recorrente, não existia suspeito, nos termos definidos pela lei processual penal citada, mas sim apenas "agente do crime desconhecido", ou seja, não existia pessoa determinada, nem determinável.

Assim, a diligência iria, seguramente, abranger pessoas alheias aos factos em investigação, recolhendo informações de inocentes na expectativa de, entre eles, se encontrar algum suspeito, o que implica, necessariamente, uma compressão ilícita de direito à privacidade e à inviolabilidade das telecomunicações, como, nesta última, bem ajuizou o Mmo Juiz a quo, no despacho recorrido.

Sendo assim, o despacho recorrido, apesar de ser lacónico, no dizer do Mmº Juiz a quo, termo que mereceu avocação por parte da Digníssima Procuradora de Círculo no seu parecer, não falecia, contudo, de razão; e deverá manter‑se; porquanto, não havendo suspeito tal como previsto no Cód. Proc. Penal, e estando em causa direitos fundamentais (direito à privacidade e inviolabilidade das telecomunicações), as respectivas restrições, nos termos requeridos pelo Ministério Público, junto do Tribunal a quo, têm de se conformar com o quadro indicado pelo artigo 44º da CRCV e 255º, nº1, a) e 2 do Código Processo Penal vigente, devendo, ainda, reger‑se pelos critérios da proporcionalidade, adequação e necessidade, o que, pelo que ficou dito, não era o caso.

 

3‑Por todo o exposto

Acordam os Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Barlavento em:

Julgar o recurso improcedente e, em consequência, manter o despacho recorrido.

Sem custas, por não serem devidas.

Mindelo, 16 de Fevereiro de 2017

 

 

[1] 'Cfr. Artº 7º da Lei nº 134/V/2001, de 22.01             '

Descritores:
 CRIME DE FURTO QUALIFICADO; CONFIDENCIALIDADE DAS COMUNICAÇÕES; DIREITO À PRIVACIDADE; SUSPEITO;