JURIS:CV:TRB:2017:5

Relator: Maria das Dores Gomes

Descritores: Questão Prévia; Incompetência em razão da Matéria;

Processo: 03.17

Nº do Documento: 04/2017

Data do Acordão: 17/01/2017

Votação: Maioria com Voto de Vencido

Texto Integral: S

Meio Processual: Recurso de Apelação Tributária

Indicações eventuais: Negado Conhecimento do Recurso

Área Temática: Contencioso Fiscal Aduaneiro

Legislação Nacional: Constituição da República de Cabo Verde de 1992 - Lei 1/VII/2010 de 3 de Maio [211.º, n.º 3; 217.º, n.º 1; 221.º, n.º 1 al. a)] Código de Processo Tributário - Lei 48/VIII/2013 de 20 de Dezembro [13.º nº 3] Lei nº 88/VII/2011 de 14 de Fevereiro [39.º al. b)] Código de Processo Civil [614.º, n.º 1]

Sumário

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Decisão Texto Parcial

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Decisão Texto Integral

Acordam, em conferencia, os juizes do Tribunal da Relação de Barlavento, e nos termos da exposição que antecede, em não conhecer do recurso por ser incompetente em razão da matéria,devendo o processo ser remetido ao Supremo Tribunal de Justiça, para os trâmites legais.

Sem custas.

Registe e Notifique.

Mindelo ,01 de fevereiro 2017

 

Exposição

AA.,, com sede na Vila de… Ilha da Boavista, devidamente identificada nos autos, notificada da sentença do Tribunal Fiscal e Aduaneiro de Barlavento, que indeferiu liminarmente a petição inicial de oposição apresentada, interpôs recurso, de Apelação Tributária,,apresentando os fundamentos contantes de fis. 139 a 151.

A Juiz a quo admitiu o recurso interposto dos autos e ordenou a subida imediata, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo ao Supremo Tribunal de Justiça.

A fls. 164 dos autos, após as alegações e contra‑alegações, verifica‑se uma informação à Mma. Juiz, com o seguinte teor: "Para os devidos efeitos informo que foi intentado recurso nos presentes autos dirigidos ao STJ o que foi admitido. Entretanto o Tribunal de Relação de Barlavento encontra‑se instalado desde o dia 02 do corrente, pelo que faço o seguinte: Conç.i 8.11.2016".

No verso, da mesma folha, a Mma. Juiz proferiu novo despacho no seguinte teor: "Nos termos do disposto no n° 3 do artigo 13º do Código de Processo Tributário, subam os autos ao Tribunal da Relação de Barlavento".

Feita a distribuição nesta instância de recurso, os autos seguiram para análise preliminar.

 

Apreciando:

Na análise preliminar dos presentes autos de recurso de Apelação, de natureza tributária,mostra-se necessário que se conheça uma questão prévia que poderá prejudicar o conhecimento de outras questões a desencadear, caso vier a proceder, e que se prende com a competência do Tribunal da Relação de Barlavento para conhecer da impugnação da sentença proferida pelo Tribunal Fiscal e Aduaneiro, relativamente à matéria de impugnação tributária.

Conforme se pode inferir do disposto no artigo 13º nº 3 do Código de Processo tributário, aprovado pela Lei 48/VIII/2013 de 20 de Dezembro, relativamente à competência dos tribunais, dispõe que : “ Compete ao Tribunal da Relação conhecer os recursos das decisões dos Tribunais Fiscais e Aduaneiro”.

Também nos termos do art.º 39º al.b) da Lei nº 88/VII/2011 de 14 de Fevereiro, compete aos Tribunais da Relação “ Julgar os recursos das decisões proferidas pelos(….)tribunais fiscais e aduaneiros(….)”.

Estas leis ordinárias foram publicadas após a revisão constitucional de 2010. O código de Processo Tributário aprovado em 2013, no âmbito da reforma das leis tributárias do país, teve como alicerce a modernização da legislação tributária, que não se encontra refletida na prévia revisão constitucional de 2010, relativamente à matéria tributária. 

Ora, resulta da Constituição da República de Cabo Verde de 1992, na redação introduzida pela Lei n° Nº 1/VII/2010 de 3 de Maio, no artigo 221º n° 1 al. a) que: "Aos Tribunais Fiscais e Aduaneiros compete, com recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos da lei: «o julgamento de ações e recursos contenciosos emergentes de relações fiscais ou aduaneiras» ".

Desta forma, resulta da Constituição que os Tribunais Fiscais e Aduaneiros são tribunais especializados e, por causa dessa sua especialidade,mereceram por parte do legislador constituinte um tratamento diferenciado.

Por seu lado, o artigo 217º da Lei Constitucional, relativamente aos Tribunais de Segunda Instância, dispõe no seu n° 1 que: "Os Tribunais Judiciais de Segunda Instância são tribunais de recurso das decisões proferidas pelos tribunais judiciais de primeira instância, (...), tribunais fiscais e aduaneiros(...)".

Entretanto, podemos sempre referir que, se por via de regra, os Tribunais de Segunda instância são os Tribunais de Relação, também podemos dizer que nem sempre esta correspondência é absoluta pois há casos em que o Tribunal de Relação funciona como tribunal de primeira instância (casos de processos de revisão e confirmação de sentenças estrangeiras, julgamento de processos judiciais de cooperação internacional, julgamento de deputados e membros do governo, julgamento de magistrados), e casos em que o Supremo Tribunal de Justiça funciona como Tribunal de Segunda Instância, como acontece nos casos de recurso per saltum, interpostos dos Tribunais de Comarca para o Supremo Tribunal de Justiça.

Podemos assim considerar que há uma antinomia constitucional, e, neste caso, cabe ao intérprete a sua resolução, utilizando métodos hermenêuticos tendo em vista a sua resolução, dando, no caso concreto, primazia à norma específica sobre a norma genérica.

Assim, em obediência ao princípio da primazia da Constituição sobre as demais leis do ordenamento jurídico, deve‑se entender, em conformidade com o disposto na Constituição, artigo 221º, que as decisões proferidas em sede de julgamento pelos Tribunais Fiscais e Aduaneiros, dada a sua natureza especial, devem ser impugnadas para o Supremo Tribunal de Justiça.

Razão porque se considera este Tribunal absolutamente incompetente para conhecer do recurso, na medida em que "Os tribunais não podem aplicar normas contrárias à Constituição e aos princípios nela consignados", artigo 211º n°3da CRCV.

Por todo o exposto, nos termos do artigo 614º nº1 do Código do Processo Civil, entende‑se que o Tribunal da Relação de Barlavento é incompetente em razão da matéria para conhecer deste recurso.

Face á incompetência deste Tribunal, sem desconsiderar o facto de a petição de recurso ter sido corretamente dirigida ao Supremo Tribunal de Justiça, impõe‑se a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça, para os subsequentes trâmites legais.

Vistos aos Exmos. Senhores Juízes Adjuntos

À próxima Conferência.

Mindelo, 19 de Janeiro 2017

A Relatora,

Maria das Dores Gomes

 

Voto de Vencido

De entre as categorias de tribunais elencadas na Constituição da República de Cabo Verde (CRCV) constam os Tribunais Judiciais de Segunda Instância [art.° 214.º, n.° 1, al. b)}.

Dando seguimento à sistematização constante desse preceito constitucional, dispõe o art.° 217.°, n.° 1, da CRCV, que "os Tribunais Judiciais de Segunda Instância são tribunais de recurso das decisões proferidas pelos Tribunais Judiciais de Primeira Instância, Tribunais Administrativos, Fiscais e Aduaneiros e Tribunal Militar de Instância". O dito preceito constitucional, no seu nº 3, vem dizer que "a organização, a composição, a competência e o funcionamento dos Tribunais Judiciais de Segunda Instância são regulados por lei".

Em cumprimento especifico deste comando constitucional o legislador ordinário aprovou a Lei n.° 88/VIII/2011, de 14/02 (LOCFTJ), que regula as matérias acima referidas, sendo que na sequência disso criou dois círculos judiciais e determinou que em cada circulo judicial há um Tribunal de Segunda Instância (art.°s 13º e 14.° da LOCFJ). A mesma lei veio dizer, ainda, que os Tribunais de Segunda Instância são os Tribunais da Relação de Barlavento e de Sotavento, com jurisdição sobre todas as comarcas das ilhas de Barlavento ou de Sotavento, respectivamente, (art.° 18.°, n.° 2, conjugado com o art.° 36.°, n.°s 1,2 e 3 da LOCFTJ) e definiu como sendo da sua competência, de entre outras, julgar os recursos das decisões proferidas pelos Tribunais Fiscais e Aduaneiros [art.° 39.°, al. b), da LOCFTJ].

E em sintonia com a opção do legislador constitucional resultante da revisão à Constituição em 2010 que o legislador ordinário aprovou a lei de valor reforçado acima aludida e demais outras leis ordinárias que aludem à competência dos Tribunais de Segunda Instância, indo todas elas de harmonia com o comando constitucional. E, de entre essas leis, consta o Código de Processo Tributário (Lei nº 48/VII/2013, de 20/12), do qual resulta que "compete ao Tribunal da Relação conhecer os recursos das decisões dos Tribunas Fiscais e Aduaneiro (cfr. art.° 13.0, a.° 3).

O art.º 221º, n.° 1, da CRCV, não pode ser invocado sem se ter em conta a interpretação sistemática da CRCV e sem se ter em devida conta que o preceito remete para a lei ordinária a regulamentação da matéria nele contida, i é, a regulamentação dos termos em que pode haver recurso das decisões dos Tribunais Fiscais e Aduaneiros para a mais alta instância da judicatura nacional. É isto que se quer dizer com "(...) nos termos da lei[1].

Não se pode descurar que normas constitucionais como a constante do art.º 221.°, n.° 1, da CRCV, se inserem na categoria das chamadas normas constitucionais não exequíveis ou hetero‑exequíveis que, por natureza, não são exequíveis em si mesmas, não têm capacidade de se executarem por si mesmas carecendo,portanto, de intervenção do legislador ordinário para se tornarem completas[2], sendo exactamente missão deste legislador tornar aplicáveis os comandos de dever ser contidos naquelas[3].

 

Assim sendo, no caso sub judice, em relação ao STJ, o n.° 1 do art.° 221.° da CRCV quer dizer apenas que cabe à lei ordinária estabelecer os termos em que haverá recurso das decisões dos Tribunais Fiscais e Aduaneiros para essa mais alta instância da judicatura[4].

Do exposto resulta, sem margem para dúvidas, que a competência para julgar os recursos das decisões proferidas pelo Tribunal Fiscal e Aduaneiro de Barlavento, como é o caso, é do Tribunal da Relação de Barlavento e não o STJ[5].

Por este ser, no essencial, o meu entendimento, votei vencido.

O Adjunto vencido

Juiz Desembargador

[1] 'Ao contrário do sufragado na exposição a que remete o acórdão, não se pode olvidar que ao dizer que aos Tribunais Fiscais e Aduaneiros compete, com recurso para o STJ, nos termos da lei, o julgamento de ações e recursos contenciosos emergentes de relações jurídicas fiscais e aduaneiros, o legislador constitucional, por via do n.º 1 do art.º 221.º da CRCV, nada mais faz que não seja ordenar ao legislador ordinário a regulamentação dos contornos em que deve haver recurso das decisões desses tribunais para o STJ. E estes termos, em obediência a esse comando da Lei Fundamental, são os constantes; do art.º 35.º, al. b), conjugado com a al. b) do art. º 39.º, todos da LOCFJ, e demais leis ordinárias, de natureza processual, aplicáveis à essa matéria.

[2] Requerem essas normas, no dizer de Bacelar Gouveia, «(...) o auxílio de uma interpositio legislatoris no sentido de tornar aplicáveis as orientações de dever ser nelas contidas» (cfr. Manual de Direito Constitucional, Vol. 1, Almedina Editora, 2005, p. 710).

[3] As normas não exequíveis são, no dizer de Jorge Miranda, «(...) carecidas de normas legislativas que as tornem plenamente aplicáveis ás situações da vida (...)» (cfr. Manual de Direito Constitucional, Tomo II, Coimbra Editora, 1991, p. 242).

[4] A aparente falta de sintonia entre o n.º 1 do art.º 221.º e o n.º 1 do art. 217.º da CRCV resulta do facto de a redacção daquele ser anterior à revisão constitucional de 2010, altura em que a CRCV não previa a existência de Tribunais de Segunda Instância, o que não belisca a devida interpretação sistemática que agora deve ser feita entre eles. Aliás, ainda que não resultasse expressamente do segundo preceito que cabe a estes tribunais julgar em recurso as decisões dos Tribunais Fiscais e Aduaneiros, ainda assim, uma vez que por via do art.º 214.º, n.º 1, da CRCV, passou a existir Tribunais de Segunda Instância e decorre do n.º 1 do art.º 221.º da CRCV que a regulamentação dos moldes em como deve haver recurso para o STJ das decisões daqueles tribunais deve ser feita pela lei ordinária, nos termos conjugados dos art.ºs 35•0, ai. b), e 391, ai. b), da LOCFTJ, a competência para julgar essas decisões em recurso caberia sempre aos Tribunais da Relação.

[5] E nem adianta entender que há casos em que o STJ pode ser o Tribunal de Segunda Instância referido no art.º 217.º, n.º 1, da CRCV porquanto tal ilação não tem nenhum suporte constitucional e nem legal.

Descritores:
 Questão Prévia; Incompetência em razão da Matéria;